domingo, 6 de setembro de 2009

“O SONHO, O DIA E A NOITE DE JOÃO COMBRAY” - O Dia


"Antes que Termine o Dia"

Segundo capítulo : O Dia

O telefone parou de tocar.

A voz da sua mãe ocupava todo o quarto.

“O que houve meu filho? Você está tremendo e suando. Não me diga que voltou àquele vício maldito. Você estava horrível, completamente alucinado. Diga-me sinceramente: você voltou a tomar aquela droga? Voltou?”

Combray pensava. Tentava colocar as coisas nos seus lugares. “Não voltei a tomar droga nenhuma” , respondeu.

“Tem certeza, meu filho? Jura?”

“Se tivesse voltado, a primeira pessoa que iria a saber era a senhora. Para lhe ser franco, eu até lhe diria com um certo prazer.”

“Não seja agressivo com sua mãe, por favor.”

“Está bem. Desculpe. Dá licença que eu vou tomar banho.”

“A Luzia preparou o seu café, e o Henrique já está com aquela injeção prontinha para lhe dar. Por falar nisso, eu ontem conversei com o seu médico e ele disse que clinicamente você está curado. Só precisa de uma psicoterapia intensa, para você se reajustar na sociedade. ”

João deu um sorriso.

“Se reajustar na sociedade”. Saiu do quarto, tomou a injeção e entrou em baixo de uma ducha fria.

Desciam vertiginosamente os raios de sol. O céu, despovoado. Sem nuvens, completamente azul. Celestial. Murmuravam as ondas. Vozes anônimas entravam em estreita comunhão. Máquinas trabalhavam. Buracos eram abertos. Tudo andava. Agitava-se o império dos edifícios. Rio de Janeiro, Leme. Dez horas da manhã.

João se debruçou no parapeito da janela do apartamento. Era imenso. Um por andar. Os fundos davam para a Rua Gustavo Sampaio, com a favela em frente. A frente do edifício edstava na Av. Atlântica, tendo como cenário a tão cantada praia mais linda do mundo.

Pensou no pequenino apartamento que tinha lá pelas bandas de Ipanema. Talvez fosse menor do que o quarto onde estava, mas era lá que ele passava a maior parte do seu tempo. Sentia-se liberto naquele pequeno mundo. Tudo parecia mais simples.
Apenas o tóxico havia atrapalhado aquela sua liberdade.

O morro crescia a sua frente. Resplandecia a favela absurda, que contrariava a própria lei do absurdo. O sol era o mesmo para todos.

Combray contemplava aquilo totalmente indiferente, mas não conseguia deixar de pensar naquela miséria, sórdida e humana.

O céu continuava azul. Celestial.

Barracos amontoados, frágeis e podres, alguns com teto, outros sem, ornamentados de imundície, cercados pela escória. Latas são panelas, homens animais irracionais. Muitos possuíam televisão “Produto Interno Bruto”. Higiene? Uma incógnita. Geladeiras e rádio vitrolas também. “Produto Interno Bruto”. Máquinas de costura, liquidificadores, etc. “Crédito ao Consumidor”. Crianças nuas faça sol ou chuva. Doença e morte reinavam no sentido absoluto. “Estabilidade Fsical”. Manuseavam as latas de lixo, buscando a felicidade do estomago. Dia de feira, data festiva, pois sobravam frutas, verduras e legumes na lama da sarjeta.”Plano Real”. Miséria. “Fundo Monetário Internacional”.

Espírito, alma, caridade, virtude, eram palavras sem sentido.

Começou a pensar no hospital e nos quatro meses que estivera internado. O início foi muito difícil, mas depois que tomou consciência da necessidade de se livrar daquele vício, tudo ficou mais fácil.

Nas reuniões que tivera com o médico, este sempre lhe perguntava: “Porque quer deixar o vício? Esta é uma pergunta muito importante, e necessita de uma resposta mais honesta”.

Combray nunca soubera ao certo o “porque tão importante” que o fizera querer deixar o vício. Mas ele tinha certeza que não queria mais transar com “aquilo”. Talvez fossem tantos os motivos, que enumerá-los todos seria bastante cansativo.
Ele, que tanto amava a liberdade, e tanto a defendia em todos os degraus da vida, tinha deixado se “atolar” na maior ditadura que o homem pode experimentar, que é tóxico.

Nesta dança macabra ele perdera toda a sua dignidade.

Nunca colocou a culpa em ninguém por ter sido viciado. Ele assumira toda a responsabilidade pelo que fizera. Ainda tomava alguns remédios, a base de vitaminas, para a recuperação física. Tranqüilizante, uma vez ou outra.

Durante o período em que esteve internado, sua mãe lhe visitou algumas vezes. Não sabia bem porque. Talvez ela tivesse um motivo muito forte para isso, ou talvez se tratasse apenas de uma novidade a mais na sua vida. Muitas vezes sentia pena dela pelo seu fracasso como mulher e mãe.

Ela havia pedido a Combray, que quando saísse do hospital, fosse ficar no seu apartamento, pelo menos durante uns tempos, pois “assim eu poderei tratar direitinho de você”, dissera.

João, sem saber porque, aceitou o convite.

O silêncio supremo era contagiante.

Combray continuava estático na janela, enquanto vários garotos brincavam numa vala, em meio à podridão das águas. Um garoto esquelético e barrigudo, mais afortunado que os outros, achou um urubu capenga e o entregou a sua mãe, cheio de felicidade. Almoço e jantar estavam garantidos. Ratos corriam desordenadamente, no afã de encontrarem algumas migalhas dispersas. Eles também morriam de fome. Uma menina, cadavérica, cabelos louros e sujos caindo pelos ombros, embalava carinhosamente a cabeça de uma boneca comprimindo-a contra os seus pequeninos seios. Possuía uma inocência maternal no olhar e nos gestos. Duas pretinhas, ao redor, cantavam “dorme neném...”.

Encostados num tronco podre, alguns garotos jogavam “ronda”. Afastado, um outro brincava com a asa de um avião.

Alguns casebres adiante, o padre oferecia “vida eterna e feliz” a várias mulheres que lavavam para os apartamentos do asfalto.

Perto de uma fossa, o comunista ofertava a vários homens, a fumaça que saia de uma fábrica perdida no infinito.

Ao longe, empregados do Estado pintavam os barracos: “um verde, outro rosa... um rosa, outro verde...”.

Um Boeing neoliberal, cheio de turistas, voava baixinho.

Suco de laranja, torrada, leite, geléia e outras coisas mais, quebraram o jejum de Combray. Começou a pensar no urubu. Engasgou-se. Não conseguia adivinhar se o comeria assado ou ensopado. Talvez pensasse alguma coisa mais.

Aos seus ouvidos chegava a melodia hino “Cidade Maravilhosa”. Tudo estava bem. Sua mãe, sentada na outra cabeceira, olhou-o com uma espécie de orgulho, e disse:
“Sr. João Combray: preste atenção no que tenho a lhe dizer, pois é um assunto muito delicado e não quero que venha com as suas ironias, ouviu?”

Combray cruzou as pernas, acendeu um cigarro e começou a rir nervosamente.
“Meu filho... eu vou adotar um bebê orfão de guerra. Já dei meu nome para a Cruz Vermelha. Eu estou muito condoída com a situação daquelas criancinhas inocentes. Eu tenho certeza que você vai adorar a idéia de ter um irmãozinho”.

João ficou estupefato, mas não estava surpreso.

Deu uma gargalhada.

“Que estúpida risada Combroy. Os pobrezinhos estão morrendo...”

Depois de muito rir, Combray disse:

“A senhora já teve a curiosidade de olhar àquela favela alí atrás? Tenho certeza que sim. No entanto nunca sentiu o que se passa ali, bem na sua cara, nos fundos, ou frente, sei lá, do seu apartamento. Está certo que a senhora não é obrigada a sentir nada ao olhar para lá, mas em se falando de adoção de crianças, eu acho que seria mais coerente você adotar um daqueles “Favelamitas”. No entanto, eu sei que um daqueles lá não faria tanto sucesso com suas amigas como certamente o fará um pobrezinho bebê vindo do exterisor. Poderá expô-lo nos salões de beleza, no calçadão, no clube de bridge, no Country , no Iate, e por aí afora...”

“Senhor Combray, devo lhe dizer que lá fora existem guerras horrendas... mas estes aí atrás, estão mal porque os pais são uns vagabundos e assaltantes. Eu adotar um favelado! Que idéia imbecil.”

Combray ficou pensando.

“É. Realmente é uma idéia imbecil”, falou João.

Colocou o short e saiu para a praia. O sol continuava forte, embora fosse junho. Partindo-se de uma visão global, tudo era bonito. Indiferente. Foi dirigindo seu carro pela Av. Atlântica. A praia estava suja, completamente poluída. A água cheia de óleo. Vários esgôtos sulcavam a areia. Continuou a sua trajetória. Posto seis. No ar pairava um cheiro de peixe. Interessante. Arpoador. Ondas cristalinas e espumantes, gigantescas, deslizavam delicadamente junto às pedras.

Terra, mar, sol e céu. A natureza estava maravilhosa.

Mulheres feias e bonitas desfilavam com graça. Blusas multicores, sandálias futuristas, biquínis e tangas cumpriam a mesma função. Vigaristas, solteiras e solteironas, desquitadas, casadas, viúvas, virgens e pseudovirgens, tornavam o ambiente social bastante heterogêneo. Coca-Cola, Kibon, Limão e Mate, matavam a sede. Guardas salva-vidas fiscalizavam. Raquetes cortavam violentamente o ar, ameaçando várias cabeças. Hipocrisia, sinceridade, futilidade, modéstia e outras tantas coisa mais, procuravam a sombra das barracas. Fofocas são criadas. Milionários e pobres, banhavam-se no mesmo mar, numa demonstração inequívoca, de que no país não havia lutas de classe. Estrangeiros, cheirando a dólar, pareciam atrair. Os rapazes dividiam-se em várias turmas. Existia um certo pedantismo. Motocas roncam. Automóveis também. Um vira-lata mijava na calota de um Mercedes.
A gaivota substituía o urubu da favela.

Tudo isto, e o céu também, faziam do Arpoador, Castelinho e a zona sul do Rio de Janeiro num recanto interessante. Chegava mesmo a existir mesmo um certo bucolismo.

João, gostosamente deitado na areia, procurava assimilar a beleza da natureza. Sentia-se ligeiramente hipócrita, mas a ordem era continuar. Pensou na favela. É necessário continuar. Tenta refletir. Não pode.

Durante a noite, cercado pela escuridão, talvez consiga.

Uma mulher vai ao seu encontro. Parece um anjo.

- Como vai João?
- Bem.
- Sozinho?
- Parece.

Conversaram. O céu continuava azul. Conversaram.

- Vamos ao meu apartamento, João?
- Não estou com vontade Angélica.
- Eu estou...
- Estou chateado...
- Vamos amor,...Vamos...

Uma nuvenzinha, tímida, escondeu-se no horizonte perdido, caindo languidamente dentro do oceano, tragada pelo infinito.

O céu continuava azul.

“Lá estava o sol”.

- Vamos.

Levantaram-se. Talvez fosse uma hora. Muitos também se iam. João e Angélica perderam-se na multidão. Aos poucos desaparecia o barulho das ondas.
Entraram no apartamento.

Duas horas depois, Combray saiu.

Parecia um pouco mais aborrecido. Entrou no carro e voltou para casa. Tinha o rosto cansado. O céu já não era tão azul. Gradativamente a tarde agonizava. Nuvens vermelhas surgiam ao longe. Tudo continuava naturalmente lindo, segundo as normas pré-estabelecidas.

Combray tomou um gostoso banho, almoçou, e foi dormir, para sonhar com a chegada da noite.

A seguir o terceiro ato : A Noite.


O autor, Wilson Gordon Parker, é escritor

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