quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A infidelidade eletrônica a serviço da estabilidade familiar


"Feito em Casa" é uma série de vídeos produzida nas comunidades COEP do semiárido que leva o Brasil até você. Neste episódio ouvimos Josias e seu companheiro cantando a toada "Mulher Casada" ,no assentamento Frei Damião, em Alagoas. "Quem ama mulher casada/ É sofredor e suspeito/ Eu digo porque tem uma / Que mora aqui no meupeito/ Tentei esquecer dela / Mais me apaixonei por ela/ E agora não tem mais jeito"

"Lucas fazia parte da seleção canarinho dos desempregados. Trabalhara numa multinacional durante vinte e dois anos, e um belo dia, quando chegou no emprego, encontrou uma cartinha sôbre a mesa, convidando-o à dar um pulo no departamento de Recursos Humanos. Estava despedido.

Recebeu a indenização, montou um negócio, mas não deu certo. O dinheiro só saia. Era ele, a mulher e o filho. Foi viver com a mãe, que tinha um belo apartamento de andar inteiro no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro.

Aos cinquenta anos era difícil arranjar emprêgo. Ademais, ele não estava com a mínima vontade de trabalhar. A mulher também estava desempregada.

A mãe do Lucas, Dona Carmem, bancava tudo com a bela pensão que o marido, um general, lhe deixára. Também tinha outras fontes de rendas, fruto de pequenas falcatruas que o general havia realizado no tempo em que caçava comunistas.

Enfurnado dentro de casa, o passatempo de Lucas era ver televisão, enquanto a sua esposa, Margarida, passava o dia na Internet, onde era operadora de um canal de batepapo no IRC, que tinha o nome de #RecantoSedutor. Era Founderr, autoridade máxima dentro de um canal no IRC. Fazia e desfazia. Kicava e bania. Era a toda poderosa. Sentia muito orgulho de ter aquele poder nas mãos.

Seu nickname era ^Marga_Louca^.

Ela mantinha um romance virtual com um cara, também casado, que morava em Manaus, mas não queria encontra-lo no mundo real. Ela não dormia. De madrugada, se contorcia de prazer em frente ao micro, lendo o que o amante teclava lá do norte. Quando não dava mais para segurar, o cara ligava, e os amantes partiam para a etapa do “voice-sex” pelo telefone. Faltava uma camara, mas isto era muito arriscado. Terminada a sessão com o amante, era hora da ^Marga_Louca^ procurar o marido Lucas. Nestas horas, como era bom, e prático, ter um marido compreensivo e liberado, sem grilos.

Na "realidade", era fiel ao seu marido Lucas, que dividia a televisão da sala com a mãe. O aparelho tinha 29 polegadas. Uma bela imagem, um ótimo som. A dona da casa tinha o poder do terrível contrôle remoto. Viam a TV popular e a TV por assinatura. Quando a mãe dormia, Lucas se apossava do contrôle, e começava a ver o que tinha nos canais da TV paga.

A empregada Maria de Lourdes, quando acabava os seus afazeres, refestelava-se na poltrona da sala. Tinha quarenta anos de casa. Aposentada, tinha dois apartamentos alugados, que lhe davam uma renda razoável. Vivia emprestando dinheiro para o Lucas. Era madrinha do filho dele, o Carlito, que eventualmente aparecia na sala.

Certo dia, Lucas clicou o canal "USA" 45 e lá estava um filme que parecia ser interessante, mas o filho logo disse: "Já vi este filme, "Os Filhos de Kate Elder", já passou na Globo, e dublado".

Ao que Lucas revidou: "Mas se já passou na Globo, porque é que aqui o filme é falado em inglês, e sem legenda?"

O garoto, que tinha 16 anos, e se dizia um anarquista com tendências socialistas e terroristas, falou: "Sacanagem pura velho. Esta porcaria aí é feita para as elites", e arrematou : "Quer ver como tem uma porção de canais só em inglês?". Olha aí : "O 46 - Cartoon, com o Gato Felix e As aventuras de Tiny, tudo falado em inglês; o 47, TNT, outro aonde os filmes são em inglês; o World Net, 49, em inglês; o ECO50, Noticias de Espanha é em espanhol; o People&Arts -43, também tem quase tudo em inglês; CNT - 33, inglês, e por aí vai. Enganação pura.".

A Maria de Lourdes achava aquilo um absurdo. Parecia até que ela estava nos Estados Unidos. "Eles deveriam fazer uma propaganda tipo - vá ao primeiro mundo sem sair da sua sala" falou Lucas. "Mas o que eles fazem, quando anunciam estes canais por assinatura, é uma propaganda enganosa; deveriam explicar que seria necessário que o futuro assinante, pelo menos, entendesse o inglês", falou Carlito.

Mas os comerciais são em portugês, fala a mãe, que acabára de acordar. "Lógico, pois na hora do dinheiro, eles lembram que estão transmitindo para um país de lingua portuguesa; mas olhe só este canal 44, o AXN; de trinta em trinta segundos eles repetem a mesma coisa, escute só : ", o seu canal de ação". Eles não falam .

Pô, não dá pra aguentar". E arrematou :"Burro é quem assina esta bosta!" É melhor ver a Ana Maria Braga, e as outras baboseiras da TV popular.

"É por isto que eu só gosto de novela da TV Globo", diz Maria de Lourdes, se levantando, e indo para a cozinha preparar um lanche para todos.

"Bem mesmo faz a minha mãe, que passa o tempo todo no IRC, jogando conversa fóra durante o dia, e namorando à noite", disse o Carlito.

Lucas olhou para o filho, deu um sorriso bem moderno, e falou:

- Enquanto for virtual, tudo bem! Aliás, é até bom, porque quando ela vai prá cama, ela se transforma numa mulher formidável, quer fazer tudo, fica louca por causa da pilha que o cara bota nela.

- É ! O senhor realmente é um côrno eletrônico, disse o filho.

Ao que Lucas respondeu :

- Meu filho, quem não se adaptar com a reviravolta que está acontecendo nos costumes da nossa sociedade, vira louco ou suicída.

A sua mãe se erotiza no IRC e eu faço a mesma coisa vendo filmes pornôs na TV por assinatura, seja em que lingua for. O importante é que, quando acordamos de manhã, estamos alegres e felizes.

Carlito olhou bem para ele, e resmungou :

-Eu não acredito !


O autor, Wilson Gordon Parker, é escritor

WILSON GORDON PARKER
wgparker@oi.com.br
Nova Friburgo (RJ)

2 comentários:

Ninótchka Carrilho disse...

Wilson, A realidade de tuas crônicas chega a ser "conversa em família", de tão real e moderno...Mistura de papo de terapêuta familiar e amigo do peito, vc materializa-se através de suas palavras, aqui na minha frente...Te julgo meio "Machadiano" por amar a forma como ele escrevia e notar semelhança no quesito "Verdade dos fatos dissimulados pelo Cotidiano" , entre Vc e Ele.....Mas, deixando bem claro, que ao te ler, visto que somos contemporâneos, esqueço do Machado de Assis e viro fã do Wilson...Beijos :)

Unknown disse...

Wilson, voce cada vez mais interessante ao escrever o cotidiano. Bom, sou suspeita em falar, pois sempre digo que sou sua fã de carteirinha. Amo as suas crônicas, mas tenho a m minha preferida.
Beijos